Cá entre nós
Sujaram as águas do Ipiranga...
Poluíram suas margens plácidas
As fábricas esquizofrênicas e irracionais...
A pátria amada mãe gentil
Não é dos filhos que pariu
É de poucos
A pátria mãe gentil
Da puta que pariu
E diga ao verde-louro dessa flâmula
Que somos negros, que somos mulatos
Que somos reais
Que somos o povo mestiço, com orgulho...
O país é varonil, impávido colosso
E o povo, rói o osso
De um povo heroico o brado retumbante
É só um grito ideal e belo, nas lajes pobres de concreto
Diversas fomes, a fome é real
A desigualdade é real
A chantagem do capital é real....
No céu da pátria neste instante há mentiras
Teu seio de liberdade deixou-se conquistar pelo capital transnacional....
E o sol da liberdade? Em raios fúlgidos?
Qual nada... somos escravos da incompetência, escravos da corrupção
Somos escravos do absurdo
Idolatradas ilusões....
Idolatrados pães e circos e sexos....
Deitado eternamente em berço esplendido
Berço esplendido e estéril...
Dos filhos deste solo és mãe gentil
De filhos submissos
Sobre tuas asas de caos do capital feroz e impiedoso...
Um golpe no meu peito nacional
Salve salve! A poucocracia
A prostitutocracia infantil absurda
Salve salve! A luxocracia brilhando nas retinas de um povo carente
Salve salve! A absurdocracia
Salve salve! A mão de ferro maquinal em rostos bonitos e televisivos...
Terra amada, lembra de meus pés descalços?
Terra amada, eu sei teu gosto e teu cheiro até hoje......
Terra adorada
Onde resplandece a imagem do cruzeiro?
Em quartos luxuosos, ou em barracos?
Onde resplandece a imagem do cruzeiro?
Nos olhos sedentos de teu povo?
Poluíram as margens do Ipiranga
Enlouqueceu a pátria mãe gentil
Emudeceu o brado retumbante
Secaram os seios da liberdade
A imagem do cruzeiro não resplandece, se esquece
Impávido colosso esquelético
Teu formoso céu risonho e límpido, e poluído, e distante...
Sujaram as águas do Ipiranga...
(in Noite Imensa - 2018)
Se Não Existe o Sagrado
Se não existe o sagrado
O lobo não corre na tempestade, uivando no vento
Se não existe o sagrado
O céu não tinge os olhares intrigados na noite
Se não existe o sagrado
O luar não se derrama pelos trigais amarelos
Se não existe o sagrado
O silêncio nada inspira aos amantes
Se não existe o sagrado
Não há o frescor do orvalho sobre o cansaço da ciência
Se não existe o sagrado
A fúria do mar não nos deixa introspectivos
Se não existe o sagrado
O infinito não é misterioso e revela-se a qualquer tolo
Se não existe o sagrado
Então não há o desconhecido
E sem ele nada é
Porque nada pode tornar-se.
(in Noite Imensa - 2018)
Sábado à Noite
Encontros
Labiais....
Desencontros
Normais...
Olhares
Letais...
Seduções
Gestuais...
Carícias...
Animais...
Ilusões
Geniais...
Gestos
Sinais...
Sentidos
Irracionais...
Momentos
Radicais...
Lábios
Carnais...
Planos
Marginais...
Noites
Ancestrais...
Memórias
Sensuais...
(in Noite Imensa - 2018)
A Noite da Consciência
Um cão selvagem corre por minhas veias
Não é daqui, mas de outros tempos
Vaga pelos milênios perdidos em meus sonhos
Salta tantas montanhas
E cruza tantos desertos
Quanto a lua pode ver de seu silêncio
Nos uivos desse cão não há história nenhuma
Há somente a vastidão, o espaço e o universo que se conhece por si mesmo
Mudo na noite intensa, sem que a consciência tenha explodido a admirá-lo
O cão selvagem nunca descansa,
E sente o suor frio em sua pele quente
E luta ferozmente pelo prazer de correr o mundo inteiro selvagem
Se é desafiado a sobreviver,
Se é ameaçado por outros ferozes animais
Não há sonho que ele já não tenha vivido
Não há um parto da natureza que se esconda dele
Não há luta que não tenha travado
Não há território inabitado que ele não conheça
Não há noite que se livre de seu ganido distante
Não há ar glacial ou equatorial que não tenha sido respirado por seus pulmões ofegantes
Um cão selvagem corre por minhas veias
Ele é de outros tempos
E não é violento nem maldoso
Porque em seu tempo não existe a maldade
Não é caridoso ou subserviente
Porque em seu tempo só há seres selvagens como ele
Ninguém sabe de onde ele veio
Ou se um dia irá de minha profundidade
Ele sempre existiu e nunca morrerá
Admirará a lua virgem de qualquer olhar humano, de cima de um monte sagrado
Conhecerá os raios de sol que nunca tocaram um só pensamento
Uivará forte procurando sua companheira selvagem, porque é sua natureza
Não existem dúvidas nem certezas por seus caminhos
Só existe a terra virgem e aberta a seus passos
E a liberdade de não haver nenhum caminho
Certa vez ele viu uma fogueira em volta da qual homens das pedras cismavam
Despreocupados do ontem e do amanhã
Entreolhavam-se tão quietos quanto pode ser a pureza e a inocência da natureza
E o cão selvagem correu em direção a eles
E ao tocá-los, mergulhou na história humana,
E nada lhe foi olvidado
E quase cego pelo que viu
E ansioso, ofegante, extenuado
Encontrou outra fogueira e outros homens ao redor dela
Correu desesperadamente ao seu encontro
E pode retornar a seu tempo
Onde não há tempo nenhum
E salta de uma montanha a outra, forte
E cruza os desertos,
E é tão livre porque desconhece o que seja uma prisão
Numa feita experimentou o descanso
Dormindo num campo de mato orvalhado pela madrugada
Foi ai a única vez que eu quase o vi
Quando perdi a consciência de mim e de tudo ao redor
Mas me transformei nele e pude vagar pela noite desconhecida
E percorri as veias de um homem sem ser um homem
Vi explosões de pensamentos e memórias no horizonte
Sem saber o que significasse isso
E corri livremente sem nenhum cansaço.
Ás vezes quase o vejo
(in Noite Imensa - 2018)
Champanhe à memória
Ainda vamos rir juntos de tudo isso... baby
Dos faróis bêbados de minhas mãos inseguras nos teus peitos
Do meu desespero Fred Astaire sapateando no palco
Do lago sereno de teu olhar
Das palavras saltando de paraquedas de nossas bocas
De sonhar um filho, baby
Da violência de tua beleza
De estar perdido no caos de seus braços
De nossas pernas embaraçadas
Do ver-te partir no horizonte enquanto eu agonizava tua despedida
Ainda vamos rir juntos de tudo isso, baby...
Pensando no nada, como os inocentes nas calçadas...
(in Noite Imensa - 2018)
Aos jovens perdidos e guerreiros cansados
Aos soldados perdidos de longe de seus lares
Cravados à espinha pás e pedras
Ao impetuoso atirados
Sem fogueira que os eleve
Por dentro e por fora tímidos
Sentados ao chão imersos
Como tintas à tela árida
De um só traço indefinido desenhados
Ao tear com fios de sangue
À navalha presa nas nuvens
No horizonte vermelho crava-se o azul
Em seus olhos penetrados
Calemos nossa voz e nosso julgamento
Oremos aos seus pais e suas mães
Abrindo o peito distantes
A esses jovens atirados ao mundo
Benzamos a eles suas vontades
De voltar para casa e beijar
Seus pequenos irmãos inocentes.
(in Noite Imensa - 2018)
* * *
Não estou aqui, não estou em lugar nenhum
Não sou agora, não estou em tempo algum
Eu sou apenas a memória que construí de mim mesmo.
(in Noite Imensa - 2018)
Para os adolescentes
Aos sete anos você tinha pelo menos uma cicatriz de infância
Aos dez você já tinha um pequeno amor idealizado, desses de criança
Aos treze uma espinha no rosto era o maior de seus problemas
Aos quinze, um desejo fervoroso era impossível de inexistir
Aos vinte você terá algumas paixões perdidas
Aos vinte cinco terá abandonado pelo menos um emprego, terá fracassado em um plano, e se decepcionado com um grande sonho
Aos trinta já haverá muitos desejos abandonados
Aos trinta e cinco tentará viver sua juventude novamente, toda em um só dia
Aos quarenta já terá provado uma sua qualidade, e conhecerá suas forças e fraquezas, e terá também uma cicatriz nos sentimentos, profunda, muito profunda...
Mas aos quarenta é que a mágica acontece: você já terá passado por uma dezena de situações de ridículo, e aceitará sua condição, por entender que não passar por alguns ridículos é impossível.
Aos quarenta e cinco abandonará umas manias e adquirirá outras
Aos cinquenta perdoará as pequenas irresponsabilidades dos jovens, até as engrandecerá, e terá algum orgulho de seus erros
- a juventude é impetuosa -
Aos cinquenta e cinco, se sobreviver à poluição, ao divórcio, às guerras sem fim, aos sempre mesmos e novos planos econômicos, à irritação com a política, no máximo nesta idade, dará mais atenção às suas necessidades e condição humana, e terá a coragem de admiti-las, dizendo: não e pronto...
Aos sessenta seu humor se tornará um pouco mais irritadiço, ou calmo de vez
Porque o tempo não melhora, nem piora, nem lembra nem esquece, não cobra e não pode ser cobrado
O tempo só reafirma cada vez mais.....
Aos sessenta e cinco sentir-se-á um vencedor por ter sobrevivido a tempestades tropicais, à solidão que às vezes o desolava, aos produtos químicos inconscientes, ao excesso de doces e comida, à decepção com a derrota de seu time, ao eterno jogo humano, ao olhar alheio, ao medo de se expor ao ridículo, e não terá mais medos como dantes
Aos setenta, você se lamentará ou poderá rir de tudo isso e de si mesmo
Se houver pelo menos um pouco de inteligência, optará pelo riso, e verá jovens errando no mundo, sentindo ser eles, como se assistisse um filme...
(in Noite Imensa - 2018)
Língua
O artigo
é fiel amigo do substantivo
o pronome
é assim com o verbo
adjetivo
alma
o tal do adjunto
eu nunca entendi bem
mas tem lá o seu sentido
o numeral me acumula
quantos beijos já te dei
lembra da velha casamenteira preposição
que o diabo foi vírgula da nossa separação
e depois somente mais algumas palavras
ponto final
fim e recomeço
A língua é do povo
Só do povo
mais de ninguém
e é perfeita
na boca dos humildes ela é ainda mais
perfeitamente imperfeita
e o poeta vai lá e erra
De propósito!
(in Noite Imensa - 2018)
Do mundo, baby
Apague as pálpebras
Desligue o mundo, baby
Feche a janela do desespero
Brinque no quintal varrido do inconsciente
Enlouquece esse tempo
E seremos inocentes de novo...
(in Noite Imensa - 2018)
* * *
Não sei o que sou
Não sei a que venho
Ou a que vou
Por isso plageio o pensador
Por que trago a mesma dor no peito
E no fundo o mesmo amor.
(in Noite Imensa - 2018)